Capítulo 12
Havia passado toda a noite acordada, a pensar nas palavras que Alphonse me dissera. Também a ele parecia custar dizer tudo aquilo, pelo jeito com que me falava. Mas era eu que tinha que arcar com aquilo tudo. Estava abraçada a Paul, sentindo o seu aroma a invadir-me a respiração. O seu calor trespassava-me a pele arrepiada pelo medo e insegurança que cada sílaba da mensagem me causava. Por um lado, não o queria fazer. Tinha um outro caminho que me era apresentado e que abracei, sem saber o que poderia acontecer a seguir.
Mas tinha que cumprir o meu propósito, a razão inicial que me trouxera à terra. Esta era a outra face adversa. Queria tanto poder ter as duas coisas, para assim poder ter um pouco de paz, que é uma das coisas que a eternidade nunca me trouxera. Aquela vida amaldiçoara-me de novo. Tinha que deixar as pessoas com quem convivi num par de dias e sacrificar-me em seu nome para assim garantir-lhes a sua própria segurança. Era uma hipótese que se calhar nem devia estar a ser posta em causa, mas era assim mesmo.
Ergui-me lentamente da cama, numa tentativa de não acordar Paul. Vesti-me rapidamente, sem fazer um barulho que fosse minimamente incomodativo. Desci silenciosamente as escadas e fui para a sala, recolhendo cada pedaço de memória que pudesse ser importante. Já sabia o que tinha de fazer. Embora fosse uma decisão muito dura, era o mais certo a fazer. Reparei no pequeno livro, repousado sobre a mesa central, que Christine andava a ler afincadamente. Peguei nele e folheei algumas páginas. Era realmente algo curioso, mas não tinha tempo a perder.
Pousei-o no sítio onde o tinha havia encontrado e dirigi-me até à porta. Saí de casa, rodando pela última vez a maçaneta daquela porta. Dei vários passos na direcção oposta, impedindo-me a mim mesma de olhar para trás e voltar para junto dele. Soltei as minhas asas da invisibilidade que as encobria e sobrevoei de novo os céus. Voar também seria uma das coisas que teria de abdicar para total segurança de todos. Por isso, aproveitei pela última vez o sopro das nuvens. Senti uma forte dor no peito que parecia não querer acabar.
Aterrei numa estação que se encontrava perto da cidade, voltando a esconder de novo aquilo que me caracterizava (ou caracterizaria pela última vez) como um anjo. Entrara sorrateiramente numa das carruagens que constituíam o comboio. Atravessei uma distância considerável dos vagões, observando cada pessoa que silenciosamente permanecia sentada no seu lugar. Após alguns minutos consegui encontrar um lugar livre, sem ninguém à sua volta. Sentei-me logo a seguir, sentindo o chão por debaixo dos meus pés a mover-se. O comboio estava em movimento.
Senti-me nervosa pelas minhas acções, pois não sabia se iriam ser bem interpretadas por parte das pessoas que tive de deixar. A senhora Howell, que tão bem cuidara de mim e a quem fizera companhia durante aqueles dias que se faziam parecer semanas e a Paul, o rapaz lobisomem por quem nutria um sentimento nada invulgar e perfeitamente natural aos olhos de qualquer pessoa. Olhei através da janela e vi que inúmeras árvores passavam diante de nós, como se fossem elas a andar e não o comboio em si.
Adormeci após o sono me ter invadido, deixando cada traço real do lado físico do real enquanto me deixava consumir pelos sonhos que se avizinhavam. A vida quase que passara sob forma de imagens digitais, como se fosse um filme a preto e branco. E uma delas foi de todo o que mais afastava de mim, pois evitava tentar lembrar-me dela. O dia em que tudo se deu. O tiroteio em que a minha família se vira envolvida, enquanto eu estava numa saída qualquer com amigas que nem se preocupavam minimamente comigo.
Só queriam saber dos seus vestidos e sapatinhos a condizer, borrifando-se para qualquer vida a não ser a delas próprias. Se não tivesse escolhido ir com elas e sim com os meus pais, talvez tudo tivesse corrido de diferente forma. Ainda hoje me martirizava e culpava-me de ser a causa da sua morte. Quando recebera a eternidade, fruto de algo que não sabia bem o que era, não sabia o porquê e o como de tal decisão. Depois, o tempo foi passando e cada vez que pensava que tinha uma vida nova como sendo um anjo, entristecia-me.
Quando de novo, a luz do sol me batera em cheio na cara, os meus olhos abriram-se instantaneamente, fazendo-me ver de seguida a paisagem que se via do lado de fora. Era Inglaterra, ao mesmo tempo que se notou que o sol começava a pôr-se. Muito tempo não me restava, por isso, assim que o comboio foi abrandando a sua velocidade acabando por parar por completo, sai do vagão onde estava para ir para o exterior, assim como as pessoas que restavam. Corri até à casa de banho da estação. Pelo menos, não me veriam aqui.
Soltei as minhas asas e num gesto rápido e sem vigor, voei até alcançar uma distância a que ninguém podia ver sequer o que estava a sobrevoar os céus ingleses. Marquei rumo até ao pilar de luz que segundo o que me contara o consílio, se localizava perto do local onde estava. Fui abaixando um pouco a altitude, tentando ver onde estava. Por sorte, tinha-o visto mesmo há instantes, em cima de um monte. As minhas asas começaram a trazer-me até terra, pousando delicadamente os meus pés sobre a erva macia. Voltei a guardá-las na invisibilidade, caminhando até estar suficientemente perto daquele lugar.
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